Santander Cultural Porto Alegre exibe a incrível ETNOS – faces da diversidade

ETNOS - faces da diversidade
 

Santander Cultural Porto Alegre

O Santander Cultural Porto Alegre ( Rua Sete de Setembro, 1028 ) exibe até 7 de outubro de 2018 a incrível e imperdível exposição ETNOS – faces da diversidade. Com curadoria de Marcello Dantas, a mostra reúne uma coleção de 173 máscaras, que incluem desde peças ritualísticas africanas, figurinos do teatro Nô japonês, máscaras do Carnaval Veneziano e Colombiano, máscaras das culturas coreanas, chinesas e indígenas das Américas, até máscaras do cosplay, do cinema e da cultura pop. O recorte inclui peças originais da artista islandesa Bjork e da dupla de música eletrônica Daft Punk. Visitação gratuita e aberta ao público de terça a sábado, das 10h às 19h e domingo, das 13h às 19h. Mais informações (51) 3287.5500 ou scultura@santander.com.br.
ETNOS - faces da diversidade
ETNOS – faces da diversidade por Macello Dantas
           O que diferencia uma etnia de outra não são os corpos, não são os anseios de felicidade e nem o instinto de vida e de amor. O que diferencia uma etnia de outra são as visões de mundo, as culturas e, para capturá-las, há um atalho. Em praticamente todos os grupos étnicos, encontramos o uso de artefatos faciais: máscaras, adornos ou pinturas. Elas remetem a poder, transgressão, anonimato, sexualidade, sabedoria, guerra, humor, demônios, morte. A máscara carrega o símbolo de quem somos e do que queremos incorporar ao vesti-la.
Os primeiros exemplares encontrados datam de mais de 9.000 anos atrás; elas são uma das manifestações criativas mais ancestrais do homem, e, curiosamente, se manifestaram em todo o mundo de forma autóctone, sem necessariamente serem influenciadas em cascata. As máscaras são a mais antiga evidência de nosso desejo de transcender e de nos conectarmos com uma dimensão mítica.
            A ideia de ETNOS é reconhecer, por meio das máscaras, a diversidade cultural em que hoje convivemos no planeta e, ao mesmo tempo, identificar, dentro de tanta diferença, algo em comum em nossa essência humana – um mote tão desafiador quanto sutil. Uma inspiração é a abordagem do mitólogo Joseph Campbell, autor de O poder do mito e O herói de mil faces, sobre o papel que tais instrumentos desempenham na vivência dos mitos (algo próximo do que são as imagens no inconsciente coletivo). Campbell nos revela que existe uma unidade mítica dentro da diversidade exterior, como se, por meio de distintas portas, pudéssemos chegar ao mesmo Olimpo mítico. O passaporte para alçar esses voos são as máscaras.
            Com sua leitura no horizonte, apresentamos uma extensa coleção de exemplares em uso na atualidade: das máscaras ritualísticas africanas às do Teatro Nô japonês, dos artefatos do Carnaval de Veneza e da Colômbia a peças coreanas, chinesas e de culturas ameríndias. Justapondo essas trajetórias longínquas no tempo, há igualmente máscaras de fetiche, de contraventores contemporâneos, e várias oriundas da cultura pop, como do cinema e do cosplay. A premissa é que elas participem de rituais vivos na atualidade – no sentido mais amplo daquilo que hoje pode ser reconhecido como ritual. A diversidade existe dentro do tempo contemporâneo, que é simultâneo – na sucessão de tempo, ela não apresenta desafio algum.
            Por vários motivos, a vida urbana moderna se destituiu de grande parte dos rituais que conectavam o indivíduo a seus grupos de origem. A apresentação de uma criança à sociedade, a entrada na vida adulta, o casamento, a morte, o trabalho coletivo nas lavouras, os ciclos da natureza: nada, ou muito pouco, dessas ocasiões para exercitar papéis simbólicos restou. Em oposição a essa carência de sentido, começaram a surgir novas ritualísticas nas últimas décadas, como diferentes formas de role playing e usos simbólicos na mídia de massas, tais como os super-heróis, o renascimento dos ritos de Carnaval e outras festas pagãs, além de muitas modalidades de comunhão de grupos à distância no mundo digital – por exemplo, o uso de máscaras nas redes sociais. As máscaras rituais se perpetuam.
            A máscara também tem o atributo fundamental de ocultar a face de seu portador. Na era digital, a relação entre máscara e identidade ganha mais complexidade. Com o reconhecimento facial e a inteligência artificial, o rosto é lido como um conjunto de dados que diferencia cada indivíduo, um reconhecimento permanente que suprime o anonimato e revê o sentido de privacidade. Por trás de cada um desses objetos reside o único espaço de privacidade que ainda nos resta, o exíguo espaço que separa um rosto de uma máscara.
Nesse contexto, o simples ato de se mascarar pode ser subversivo – símbolo de revolta e de não conformidade. O artefato torna-se uma arma, um recurso para quebrar um controle imposto, alheio ao consentimento pessoal. Em mais de 20 países da Europa, Américas e Oceania, o uso de máscaras em manifestações públicas já é ilegal. Para além do anonimato, a simbologia da máscara aciona medos profundos: um mascarado em um aeroporto hoje representa ameaça tão iminente quanto uma bomba. Ocupam nosso imaginário alguns atos brutais de nossa História recente, relacionados à figura de carrascos, de membros de grupos extremistas como o Setembro Negro, da Ku Klux Klan, e Jihadi John, do Estado Islâmico, e suas execuções televisionadas. A máscara empodera indivíduos, os liberta de eventuais amarras e os conecta a ideais que podem levá-los à cometer atrocidades.
            O mundo do cinema encontrou o das máscaras em 1898, apenas três anos depois da invenção dos irmãos Lumière, com a primeira imagem etnográfica em movimento – e nunca mais se separaram. Alfred Cort Haddon, autor do registro pioneiro, levou uma câmera ao Estreito de Torres, em Papua-Nova Guiné, e eternizou a performance de um aborígene portando uma máscara em um ritual. Esse filme é uma das pérolas da pesquisa dessa exposição. Esse símbolo tornou-se universal na cultura midiática e conformou uma nova linguagem partilhada, com manifestações produzidas e consumidas globalmente. O cinema e as máscaras se encontraram nesse momento e nunca mais se separaram. Surgiram heróis, super-heróis e vilões, preciosamente mascarados para caracterizar o mito que desejavam invocar. A história do cinema no século XX atualiza a narrativa das máscaras, mascarados e do desmascarar.
            As máscaras também encarnaram ritos da música pop, com artistas como Daft Punk, Björk, Kiss e Gorillaz, que encontraram nelas uma maneira de transitar entre o universo pop e a criação de códigos que sua música suscita, mas que suas faces não simulam.
            Artistas visuais como Pascale Marthine Thayou, Miguel Moreira e Silva, Beau Dick e Pierre Huyghe também fizeram o uso da máscara como artifício criativo, invocando uma reinterpretação de mitos sob uma ótica atual, e entendendo a máscara como um agente que traduz, como poucos, a força que uma obra pode ter sobre quem é imantado por ela. O filme de Huyghe, Untitled (Human Mask), mostra o poder transformador que uma máscara de Teatro Nô japonês exerce sobre um macaco, que, ao utilizá-la, incorpora gestos humanos e comportamentos que desafiam nosso entendimento do que é um símio.
            Mas o que há em cada exemplar desse heterogêneo conjunto reunido em ETNOS que seja capaz de interligar toda e qualquer cultura? As máscaras mostraram um caminho para reconhecer a necessidade humana de experimentar outro estado de consciência e de espírito, de exercer um poder validado por seu grupo. São um artifício que toda a humanidade encontrou, não importa a sua origem no planeta ou realidade cotidiana. Se, por um lado, elas permitem incorporar códigos reconhecidos pela sua cultura de origem, quanto mais nos tornamos diversos e miscigenados mais aprendemos a reagir a esses códigos. Essa reação nos certifica de que a diversidade se interiorizou em nós.
            Passamos a entender que as máscaras são onipresentes e que criam uma linguagem universal de si mesmas. Uma linguagem que não depende dos idiomas e que permite que nos comuniquemos por símbolos que não haviam, até então, se universalizado. A beleza de uma linguagem não verbal como a das máscaras é que ela abre nossa cabeça para a formulação de perguntas para as quais não temos respostas.  O artefato físico da máscara é a evidência dessa linguagem. O que existe na sutil conexão entre essas diversas manifestações culturais é algo que pertence somente à percepção humana. ETNOS quer mostrar conexões que permitem entendermos a nós mesmos dentro dessa nova paisagem em que a diversidade nos une mais do que a identidade. Em que o que não conhecemos nos empodera mais do que aquilo que nos é familiar. Em que as perguntas sem respostas nos levam a lugares muito mais interessantes do que o saber raso da indexação.
            O ser humano não se basta, e essa busca por outra dimensão é algo que sempre se manifestou, seja onde for. Mas no presente essas buscas se conectaram. Nunca a diversidade foi algo tão visível para tantos, e nunca foi tão evidente o desafio e a oportunidade de se conviver num lugar tão repleto de signos.